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Foto do escritorJuliana Caveiro

ANDARES DA VIDA

Em cada andar encontra-se uma história inspiradora sobre a trajetória dos imigrantes africanos até a capital de São Paulo


Por Fernanda Varela, Helena Garcia, Isabella Baliana, Juliana Caveiro


Dossô, Teresa, Angélica, Aminata, Kennedy, Peter, Bajgour… a lista é longa e repleta de nomes. Muitas Teresas, Angélicas, muitos Dossôs e Kennedys, todos juntos e misturados, perambulando pelas ruas da metrópole que, a cada dia mais, torna-se berço de inúmeras culturas. Segundo dados da Secretaria Nacional de Justiça, 2017 foi o ano com mais pedidos de refúgio, 33.866 no total. Desses, 4.785 foram realizados por africanos. Quase cinco mil nomes cruzaram fronteiras, um oceano inteiro, barreira de língua, de vida e de crença, além, é claro, de burocracias. Hoje escrevem um novo capítulo de suas histórias, agora, em terras onde “canta o sabiá”... ou melhor, na terra da garoa, onde o ruído das buzinas, motores e passos apressados se convergem, formando a canção que embala os dias e as noites paulistanas.


O cenário já tinha sido traçado, na mente e no papel. República, zona central de São Paulo. Era manhãzinha de uma sexta-feira nublada e chuvosa - São Paulo tinha que fazer jus ao seu famoso apelido - e lá estavam: quatro aspirantes a jornalistas, defendendo o brasão de repórteres universitárias, impelidas por um espírito de aventura, em busca de boas histórias sobre africanos que decidiram tentar a vida na capital da “oportunidade”. Era um universo novo à espera, que apesar de tão perto geograficamente, permanecia tão distante da realidade das quatro meninas, que ao se encontrarem na estação da República, por volta das oito e meia da manhã, combinaram de traçar o destino, a Rua 24 de Maio, mas não o roteiro do que poderia acontecer até lá. Aventura! Jornalista rumo à reportagem é assim, não é mesmo?


Não demora nada para a animação tomar conta ao nos depararmos com os primeiros imigrantes que arrumavam seus quiosques e tendas na rua. Tiravam panos, tecidos coloridos, acessórios, máscaras, e começavam, aos poucos, a ajeitar suas mercadorias para mais um dia de labuta. Sem perceberem, fizeram com que as expectativas dessas jovens universitárias aumentassem a cada produto colocado à venda.


Pouquíssimos minutos depois de andar da estação de metrô mais próxima, encontramos o pequeno, embora muito significativo reduto da cultura africana na região central da capital paulista: o Centro Comercial Presidente, vulgo Galeria do Reggae. Chegando ainda acanhadas nessa pequena África brasileira, vimos que a estrutura era antiga, e em alguns pontos, até enferrujada. O local estava mal iluminado, contando somente com a luz nublada que entrava pela parte da frente do prédio. A escada rolante fechada, e para a nossa surpresa e decepção, as lojas também. Andando de um lado pro outro, sem rumo certo, olhando uma loja aqui e outra ali, vendo tudo apagado e desabitado, decidimos investir em uma solução inesperada.


É aqui que Sirlene, a recepcionista do lugar, entra na história. Essa senhora, de olhar sutil, e voz fininha, carregada de um sotaque gostoso de ouvir, não devia ter mais de 55 anos.


  • Com licença... Você sabe se tem imigrantes africanos que possuem lojas aqui?

  • Moça, aqui é tudo de africanos praticamente. Só tem eles. Até chamam aqui de Galeria África. Eles ainda não abriram o comércio, chegam um pouco mais tarde.


Só restava esperar. Sirlene se revelou uma verdadeira conhecedora da realidade de muitos dos imigrantes que trabalhavam ali. Com alguns minutos de conversa, e com as devidas apresentações feitas - nome, objetivo da visita, o roteiro de praxe - ela nos deu um relatório completo do local e dos comerciantes que “habitavam” a Galeria. A funcionária contou que muitos africanos conheciam o local, e também desejavam uma oportunidade de mostrar seu trabalho e ganhar seu próprio dinheiro ali. Eram de variadas profissões, “têm cabeleireiros, costureiros, cozinheiros, lojistas e por aí vai”.


A realidade dos fatos vai ao encontro desse cenário, de acordo com a Polícia Federal, 292.288 estrangeiros, entre os anos de 2001 e 2017, decidiram tornar o Brasil sua casa. Entretanto, mesmo o volume sendo alto, não há registros de uma quantidade exata de pessoas que se mudaram para a metrópole desde essa época, principalmente, porque muitas entraram de forma ilegal no país.


Pois bem, Sirlene, nos deu orientações riquíssimas enquanto aguardávamos a chegada dos estrangeiros. Entre um e outro que se aproximava, ela dizia: “esse aí é de lá, trabalha em tal andar”, ou “olha lá, essa também é lá da África, Congo, se não me engano... minha amiga!”. Nosso receio e timidez ainda eram grandes. “Como fazer com a barreira da língua? E se não entenderem o português direito? E se não quiserem abrir suas vidas conosco?” E se… E se…


  • Olha! - alerta Sirlene - Tá vendo esse moço chegando? Ele é costureiro, tem uma loja, pode falar com vocês! - e sem nem percebermos, a “quinta” integrante do grupo, toda engajada, já chamava a atenção do homem que caminhava tranquilamente em nossa direção.


TÉRREO


O senhor Dossô aparentou estar tão tímido quanto nós todas juntas. Pego de gaiato quando chegava para abrir o ateliê que mantém no terceiro andar da galeria, o costa-marfinense, de 58 anos, apesar de não falar bem assim o português, aceitou o desafio de conversar conosco sobre sua trajetória como imigrante.


Sirlene tratou de fazer as honras em nome do grupo. “Elas são estudantes e querem saber mais sobre a sua vida, o que você faz, seu trabalho…”. A secretária, e agora “guia” na matéria, também ajudou “traduzindo” algumas coisas para o senhor que, meio sem jeito, afirmou, antes de tudo, não falar bem a nossa língua. Ah, se alguma de nós arranhasse o francês...


Dossô tem família. Uma esposa e cinco filhos, todos estão na Costa do Marfim. Há cerca de dois anos ele vive longe de todos eles. “Todo domingo eu falo com minha família inteira”. Esticando os lábios num tímido sorriso, ao mencionar os familiares, Dossô nos revela um dente de ouro escondido. O marfinense manda uma parte dos recursos que ganha, com o trabalho no ateliê, para ajudar a família com as despesas da casa. Em sua terra natal, não tinha dinheiro suficiente para sustentar todo mundo. “Eu vim pra cá pra ser costureiro, como eu era na Costa do Marfim”. Mas nem sempre foi assim.


Antes de aterrissar em terras brasileiras, Dossô viveu cinco anos na Venezuela. Lá, não trabalhava com costura, mas fazia sapatos em uma grande fábrica. Não podia mandar o dinheiro para sua esposa pra ajudar a pagar a escola, “por causa de problemas...” “viver lá não é bom, tem muito custo”. Foi preciso mudar novamente. Dessa vez, veio para o Brasil e se estabeleceu em São Paulo. Começou a trabalhar em casa com uma máquina de costura comprada, mas percebeu que não estava funcionando. Ninguém via, tocava, experimentava, ou sequer conhecia suas confecções, e com isso, não conseguia clientes para se manter. Quando ficou sabendo da existência da Galeria do Reggae, pediu ajuda para conseguir um espaço no local. Deu certo! Hoje, em cima de um salão de produtos para cabelos afro, fica a pequena, porém digna, oficina de costura de Dossô, que nos convidou para conhecê-la de perto.



Subimos cinco íngremes degraus até a parte superior da loja 19, e encontramos de primeira uma arara onde estão penduradas as saias, vestidos, bermudas e camisas coloridas confeccionadas por Dossô. Os tecidos, com os quais produz as roupas, são comprados por ele próprio, e vêm de todo lugar. “Angola, Costa do Marfim...” É possível então, neste momento, ver não só um, mas três dentes de ouro, escancarados num sorriso bem mais aberto, sorriso de quem sente orgulho do que faz, e faz bem feito!


Este simpático costureiro ainda não possui o visto permanente, e por isso, não pode voltar para rever a família. Mesmo assim, afirma sem hesitar que ficar aqui é melhor, pois consegue sustentar sua esposa e filhos. “Agora eles podem ter roupa, comida, tudo, lá na Costa do Marfim, eu não poderia ajudar assim. Por isso, agora está melhor que antes”. Quando perguntado sobre a saudade, Dossô não esconde seu maior sonho: “Quando tiver documento, minha esposa vai vir pra cá, primeiro. Depois, meus filhos. Porque eu quero ficar aqui, gosto muito daqui, é tranquilo. Só falta eles”.



3° ANDAR


Ao longo do percurso de sobe e desce pela Galeria, vimos que era possível se deparar com dois tipos de pessoas, os imigrantes solícitos, abertos a uma boa conversa e “curiosos” em saber o que quatro meninas faziam tão cedo naquele lugar, zanzando meio sem jeito, e aqueles que, muito desconfiados, mal respondiam o seu nome. Pegando a “manha” aos poucos, contamos com o apoio da Sirlene para saber com quem poderíamos conversar… Ela indicou Angélica, cabeleireira, dona do salão Jalekatu, que fica no terceiro andar da galeria. Subimos.


Chegando perto do salão, lá estava Angélica, já na ativa, trançando os cabelos de uma cliente.


  • “Angélica?” - saudamos - Você que é a Angélica?


Ela logo afirma com um olhar altivo. Seria Angélica uma personagem do primeiro grupo, solícita, ou do segundo grupo, totalmente fechada a um pequeno papo sobre sua vida no Brasil?


  • Somos estudantes de Jornalismo e estamos fazendo uma matéria… - aquele bordão de sempre.

  • Eu não posso contar minha história - respondeu ela, abruptamente, assim, sem mais nem menos.


Quase acreditando que a entrevista tinha terminado por ali, entra em cena uma menina esguia, com ar e segurança de uma modelo de passarela. Ela é Aminata, 18 anos, filha de Angélica.


  • Mas podemos fazer um resumo - afirmou Aminata, que se prontificou a nos contar, até então de maneira “resumida”, a história de sua mãe, e a dela também.


As duas preferiram narrar a dura jornada que tiveram até aqui em inglês, a língua oficial falada em seu país, Serra Leoa. Angélica ainda não completou 40 anos de idade, mas já tem uma história que pode ser transformada em livro, filme, ou uma peça de teatro. Pertencentes à religião muçulmana em seu país de origem, a serra-leonense “passou por muita coisa desde quando era pequena”, nos contou Aminata sobre o passado da mãe.


Quando fez o uso do termo “muita coisa”, Aminata não estava, nem de longe, exagerando. Sua mãe, uma jovem pertencente, até então, aos 46% da população muçulmana de Serra Leoa (maior religião do país), casou-se muito nova, deu à luz muito nova, e também sofreu muito nova.


As lágrimas começam a rolar no rosto da jovem, e as vozes de ambas, mãe e filha, embargam. Compreendemos e deixamos que Aminata, em meio a suspiros espessos que tentam sustentar o peso de suas palavras, recupe o fôlego.


  • Primeiro - continuou a menina - ela (Angélica) viajou para Cabo Verde, só depois que saiu da África. Ela viveu em Cabo Verde por muitos anos, antes dela vir para cá. Ela mudou por causa de violência. Todas nós sabemos que muitas mulheres passam por isso em todo o mundo.


Mulheres sofrem violências. E a mulher africana, e muçulmana, também. Aminata conta que sua mãe passou por uma tradição no seu país, a mutilação genital. O rito parece ser algo distante do mundo real, em pleno 2019, quando pensamos que se trata de um procedimento onde parte do clitóris e do sistema genital feminino é arrancado da mulher em uma cirurgia dolorosa, e definitivamente não autorizada, muito menos desejada pela “paciente”. Uma ação desumana, que acontece em vários países, como Uganda, Quênia e Egito. Angélica está aqui para provar!


As dificuldades que acompanhavam Angélica desde a sua juventude, continuaram a seguindo de perto em seu novo tempo em terras brasileiras. Ela mesma tomou a liberdade de narrar a experiência que teve como recém-chegada ao Brasil.


  • Eu sofri, fiquei só com uma calça e um sapato, com frio. A janela aberta entrava muita água quando chovia. Eu chorei demais, menina. Eu chorava muito. Eu tinha só um copo para tomar água. Eu só comia um pão a cada dia. Se comia um hoje, tinha que esperar para comer outro só amanhã. Bem, graças a Deus, Deus me ajuda.


A serra leoenense chegou ao Brasil de mãos vazias. Primeiro destino: Fortaleza. No entanto, Angélica percebeu que quase nenhum imigrante africano se estabelecia na capital cearense. Segundo (e definitivo) destino: São Paulo. “Não tinha nada quando cheguei aqui, mas graças a Deus que a Cáritas me ajuda muito”, diz Angélica, emocionada, mexendo os punhos em sinal da força com que veio, e com que continua a lutar aqui no Brasil. A Cáritas Brasileira é uma organização social que visa defender os direitos humanos e a construção de uma sociedade justa e solidária. A entidade trata, dentre muitas outras iniciativas, de acolher e prestar o suporte necessário aos migrantes e estrangeiros recém-chegados à pátria do “brado retumbante”.


  • Eu cheguei lá (na Cáritas) - e pedi trabalho pra eles. Eu disse: ‘por favor, você tem um trabalho pra me ajudar?’... Eu não quero chorar mais. Bem, graças a Deus agora eu tenho meu lugar.


O desejo da Angélica era não sofrer mais, não chorar mais. Havia deixado marido e quatro filhos em Serra Leoa. Fez de tudo o que pôde para trazer sua única filha menina, Aminata, para junto dela, antes que ela completasse a idade necessária para se casar. Angélica sabia que a probabilidade do destino de sua filha ser igual ao dela era imensa. A serra leoenense armou um verdadeiro plano para “raptar” Aminata em Serra Leoa e trazê-la ao Brasil, com a ajuda do Cáritas. “Eu pedi ajuda pra uma menina chamada Gabriela pra trazer ela (Aminata) pra cá. Eu não queria que ela ficasse lá, porque senão ela teria que passar pelas nossas tradições. Porque se ela ficasse lá, teria que passar por uma circuncisão, ela teria que se casar forçadamente com um homem que ela não conhece, que ela não gosta”.


Pelas tradições muçulmanas na África, homens mais velhos podem escolher suas noivas quando elas ainda são meninas pequenas, às vezes até bebês. Há interesse econômico (o dote) envolvido nos laços matrimoniais, e o noivo tem permissão para escolher até quatro esposas ao longo da vida. Jovens são prometidas em casamentos às vezes sem nunca ter visto o pretendente, às vezes sem saber que ele pode ter o dobro da idade delas… A mutilação genital feminina é um rito que, segundo a cultura, traz e assegura a pureza da noiva e futura esposa. A mulher perde o prazer sexual, não recebe os estímulos naturais que o corpo dela foi feito para produzir… E assim o casamento é firmado, com a possibilidade de traição, por parte da mulher, eliminada.


Angélica viveu tudo isso de perto, e lutou para proteger a única filha que tinha, de um destino debaixo desta dor. Obviamente foi um plano repleto de riscos… “Foram dois homens para lá, e eles e minha irmã roubaram essa menina. Eles tiveram que se esconder embaixo do carro. Se esse carro dá partida naquele dia, eu perco ela”. As lágrimas continuavam a cair no rosto das duas - e nos nossos rostos também.


Hoje, Angélica tem seu próprio salão e faz penteados, cortes, e tranças para conseguir seu dinheiro e sustento. Marcada na pele por atrocidades, Angélica almeja um futuro melhor... para ela, sua filha e todas as mulheres.


Não foi à toa que enxergamos na jovem Aminata o poderio de uma supermodelo no início de nossa entrevista. Ela desfilou, no dia 25 de Agosto deste ano, representando Serra Leoa, seu país de origem, no Miss Simpatia África, desfile que ocorre em São Paulo e reúne diversos músicos e artistas vindos de países africanos. Nele, diversas modelos do continente concorrem pelos prêmios, entre eles estão: Miss África Brasil, Primeira Dama, Segunda Dama e Miss Simpatia, sendo este último conquistado pela jovem.


Apesar de ter ganho o título, o sonho de Aminata vai muito além do que ganhar uma faixa brilhante e uma coroa. “Eu quero mostrar para outras meninas que elas também podem, do que são capazes de fazer. Então, eu fiz isso por causa de todas nós, de todas as garotas. Eu estou tendo a chance de fazer isso, mas tem algumas que não têm a chance por causa dos pais que não permitem que façam isso. Então eu fiz isso para dá-las a coragem e a força, e também para motivar os pais a deixá-las se tornarem o que elas querem”.





2° ANDAR


Apenas um andar separa Angélica e Aminata de sua conterrânea, a cabeleireira Bajgour, de 53 anos. Mesmo com pouca distância física, em matéria de vivências e, principalmente, visão em relação à sua terra natal, Serra Leoa, a distância é tremenda, mostrando claramente a complexidade existente dentro dos países do continente africano.


Bajgour nos chamou para conversar. Foi assim, bem espontâneo. Ainda sem clientes no pequeno salão de beleza em que trabalha, no segundo andar do Centro Comercial Presidente, a cabeleireira, dona de um olhar e uma fala desconfiada, aceitou com toda a pompa ser entrevistada sobre sua trajetória até a capital paulista.


As primeiras respostas são aquelas “curtas e grossas”. Sustentamos constantemente, durante o início da conversa, a impressão de que Bajgour desconfiava do porquê estávamos ali fazendo aquela série de questionamentos sobre sua vida. Impressionante como o método da entrevista como um diálogo, discutido tão constantemente em sala de aula (salve Cremilda Medina), é extremamente importante e vital para alcançarmos informações mais profundas sobre a história de nossos entrevistados. Tudo depende deste laço, criado em algum momento da entrevista. Temíamos não criá-lo conversando com Bajgour naquela manhã…


Faz treze anos que a serra leonense vive no Brasil. E não há drama sobre a saudade de seu país, marido, e filhos. “Vim pra cá, gostei, e fiquei. Eu saio e volto, saio e volto”. Toda a família dela ainda está em Serra Leoa. Só dois de seus filhos, o mais velho de 34 anos, e o pequeno, de 12, já não vivem mais no país africano. O primeiro vive nos Estados Unidos, casado, com filha, trabalhando na terra do Tio Sam. O mais novo vive e estuda aqui no Brasil.


“Só a minha bebê está lá em Serra Leoa”. Ao afirmar isso, contando um pouco sobre os motivos que fazem a cabeleireira retornar tanto ao seu país, trocamos olhares confusos com tal informação. Teria Bajgour deixado uma neném em Serra Leoa para vir para o Brasil tentar uma nova vida? Logo a confusão é esclarecida. A “bebê” a qual Bajgour se refere é sua filha do meio, a única menina, que tem 25 anos de idade, e ainda está em Serra Leoa. Eis então o ponto crucial desta entrevista que, além de criar o “laço” do diálogo mais desenvolto entre todas nós, também nos deixou completamente curiosas.


  • Sua filha quer vir para o Brasil também?

  • Ela quer vir pra cá, mas eu falo pra ela ficar lá. Eu tenho medo. Porque ela é novinha igual a vocês. Aqui mulher sofre muito.



Por conta deste medo que sente em ser mulher aqui no Brasil, Bajgour defende a estadia da filha em Serra Leoa até ela terminar os estudos. “Ela vai sair de lá, estuda lá e depois ela vai pro Canadá pra continuar”. O custo elevado para pagar os estudos aqui no Brasil, também faz com que a cabeleireira prefira manter sua “bebê” longe do país onde vive há mais de uma década.


Esse relato nos faz refletir em como uma nação é repleta de multifacetas e características. Um só lugar, Serra Leoa! Duas mulheres e perspectivas tão opostas. Angélica raptou sua única menina para ter no Brasil a chance de uma vida livre que, provavelmente, não desfrutaria na África. Bajgour, por outro lado, defende a permanência de sua única filha no mesmo país da África Ocidental, onde acredita ser mais seguro e estável para seu crescimento e educação. Definitivamente, é preciso conhecer histórias como estas para ver o quanto as generalizações não cabem dentro de um continente tão vasto, diverso e complexo como a África.




SUBSOLO


A loja do tanzaniano Peter fica tão escondida no subsolo da Galeria quanto ele mesmo atrás do balcão, dando alguns telefonemas. Ele tem 53 anos, uma esposa, três filhos brasileiros, de 17, cinco e dois anos de idade, e uma Lan House que gerencia no Centro Comercial Presidente. Nos aproximamos meio acanhadas do estabelecimento pouco habitado, tomado pelo forte aroma de incenso e pelos cantos árabes que tocavam sem parar.


Peter se mostrou um homem de poucas palavras, e muito reservado. Ele deixou a Tanzânia, país situado na chamada África Subsaariana, já tem vinte anos. O plano inicial era chegar ao Brasil, onde tinha alguns amigos, e partir com eles para os Estados Unidos. “Eles foram e eu fiquei”. Ele não se estendeu muito sobre os motivos que o levaram (ou o forçaram) a ficar por aqui. Na verdade, Peter decidiu não se estender muito em quase toda a entrevista. Uma ligação ali, e um atendimento a um cliente que saía da cabine de telefonemas aqui, interrompiam os momentos em que tentávamos desenvolver uma conversa mais profunda com ele.


Apesar de não apresentar queixas quanto ao seu país, descobrimos que Peter gosta do Brasil. As coisas funcionaram para ele aqui, e muitas pessoas buscam sua loja para telefonar para inúmeros países da África. Há duas pequenas cabines contendo um telefone de fio, onde na parede está pregado um papel contendo os valores cobrados por minuto de ligação. Alguns centavos por minuto, preços diferentes para cada país do continente africano. Malawi e Togo eram alguns dos mais caros.


Em 2013 os documentos brasileiros oficiais do estrangeiro Peter ficaram prontos, e desde então, ele sustenta muito bem a família em São Paulo. Ele afirma que não tem muito como deixar a saudade da terra natal bater, já que seus retornos à rica e selvagem Tanzânia são bem frequentes. Peter aparentou não estar muito pra conversa, e nós, percebendo isso, nos retiramos e deixamos o tanzaniano continuar a ouvir sua música, e atender seu telefone em paz.



TÉRREO


Assim como Peter, Teresa, uma cabeleireira angolana de 43 anos de idade, que encontramos no primeiro dia de entrevistas, não estava muito afim de papo quando viemos com a história de conhecer um pouco mais sobre sua vida aqui no Brasil.


Diferentemente do tanzaniano, porém, a moça tímida, que veio ao Brasil uma vez, em viagem, e decidiu ficar permanentemente, há seis anos e meio, parecia muito concentrada no trabalho que estava fazendo em uma de suas clientes.


Teresa, apesar de fechada, é simpática e estava se divertindo com a situação - mesmo não demonstrando abertamente. Deixamos que ela mesma se apresentasse, e a angolana, calmamente, começou a falar enquanto trançava os cabelos de uma moça. “Eu vim aqui só pra conhecer o Brasil. Depois de vir para cá e ver que tem vários africanos que vieram para trabalhar, conheci comerciantes [africanos]. Conheci uma que ia para a Nigéria pra comprar produtos chineses e vender aqui. Eles vão para outros países também pra comprar produto. Teve um momento que eu tive que passar aqui no Brasil para ver como funciona também e aí decidi ficar”. E foi assim, decididamente, que a nova vida de Teresa começou.


É fácil - e até genérico- pensar que o principal motivo que impulsiona uma pessoa a sair do seu país, deixando parentes e costumes pra trás, para se mudar para uma nova terra, totalmente distante (geográfica e culturalmente) da sua, são as dificuldades financeiras ou a instabilidade política/ social da sua nação. Acreditamos que a maioria das pessoas raciocina assim quando vai conversar com um imigrante. Não fizemos diferente. E percebemos, com o relato de Teresa, que nem tudo deve ser colocado numa mesma tigela.


“Porque no meu país é como aqui no Brasil. Se você quer trabalhar, você vai ganhar, mas se você não quer trabalhar, você também não vai ganhar. Lá na África, a gente vive bem. Se você sabe trabalhar, você não vai sofrer, não. Eu não vim pra cá por causa de sofrimento, não. Eu vim aqui só pra conhecer. Aí falei: ‘tá bom, vou ficar’”. E assim foi, e continua sendo. Teresa trabalha, Teresa recebe, Teresa ensina.


Seus quatro filhos também aprovaram sua escolha de ficar no Brasil, por que “aqui eles conseguem estudar”. Ela deixa as quatro crianças - de três, seis, oito e 12 anos, pela manhã na creche e no colégio, e pode passar o dia trabalhando no salão. Teresa já era comerciante em Angola, país que é nosso “irmão” de colonização. Angola foi colônia de Portugal até meados dos anos 1970, quando conquistou a independência. Hoje, a nação membro da União de Cidades Capitais de Língua Portuguesa, ainda luta para se estruturar política, social e economicamente. E Teresa está aqui, fazendo sua parte, trabalhando dia após dia, e mantendo a família unida, e voltando sempre que pode para sua terra: “Sinto falta da Angola, mas todo ano nós [eu e minha família] vamos para lá. Fui para lá trabalhar esse ano, e fiquei de julho até agosto lá”.





A primeira conversa com Teresa foi assim: amigável e rápida. Tanto é que, semanas depois, quando retornamos à Galeria para conversar com mais alguns imigrantes africanos, a cabeleireira reconheceu nosso grupo quando passamos pelo salão dela, e deixou um sorriso solícito, enquanto falava detrás do balcão do caixa: “Tudo bem com vocês? Precisam de alguma coisa?”. Naquele hora não precisávamos, mas sabíamos que poderíamos contar com ela, caso seus compatriotas não quisessem conversar muito conosco.


Neste mesmo dia, em nossa segunda visita, no andar térreo da Galeria do Reggae, ou melhor, da Galeria África, reencontramos a “quinta” integrante do grupo, Sirlene. Chegamos muito cedo naquela manhã de segunda feira, quando o turno de Sirlene ainda não havia começado. Não pudemos esconder o nosso descontentamento em não encontrar nossa guia sentada na recepção do Centro, como da última vez que a vimos. Tivemos que zanzar pela Galeria contando com a memória do que ela havia nos dito da primeira vez. Deu tudo certo no fim das contas, e já estávamos indo embora quando vimos a recepcionista conversando com algumas pessoas perto da saída.


  • E aí Sirlene! - gritamos animadas em sua direção- Lembra da gente?

  • As meninas da reportagem né? - ela disse, como se estivesse cavando na memória nossos rostos. Acertou!


Aproveitamos o momento para pegar algumas informações sobre essa importante personagem, que foi o nosso luzeiro dentro daquele espaço novo e totalmente desconhecido por cada uma de nós. Eis então, novamente, Sirlene, baiana de nascimento, mas registrada em São Miguel Paulista, bairro da zona leste da grande São Paulo, do qual é moradora fiel há 49 anos. Sirlene construiu bonitos laços de amizade na Galeria África. “Sou grata a este lugar, conheci muitas pessoas das redondezas, e também outras culturas”. A recepcionista trabalha no local há 27 anos. Com certeza, como ela mesmo afirma, e demonstra, Sirlene ama o seu trabalho no Centro Comercial Presidente. E também aprende muito com as pessoas por ali.


Sirlene teve duas décadas de convivência com os africanos que vieram ao Brasil para começar um novo capítulo de suas vidas. Nós tivemos apenas dois dias, mas que foram suficientes, por hora, para nos mostrar que existe uma gama, uma lista, repleta de nomes, como os Dossôs, os Peters, as Teresas, Angélicas, Aminatas e Bajgours, de vidas, de histórias, de lutas humanas, que circulam todos os dias ao nosso redor, em nossa cidade. Seja no país de origem, enfrentando a falta de recursos, de dinheiro, fugindo da opressão dos costumes, da violência, ou mesmo na nova terra, lidando com os desafios de aprender uma nova língua, de lidar com um povo diferente, que funciona em uma estrutura social diferente, eles estão ali!


Alguns são conquistados pelo Brasil, e, por isso, decidem vir para cá. No entanto, isso não muda o fato de que continuam a amar seus lares, e os visitam sempre que podem. Já outros estão aqui pela força da necessidade, seja por religião ou falta de capital. De qualquer maneira, a vida deles tem nuances, particularidades e são únicas.


E dentro de cada um dos 54 países africanos, existe uma lista repleta de nomes, que indicam vidas, famílias, culturas, costumes, tradições, problemas, riquezas, esperanças, totalmente diferentes uns dos outros, cada um repleto de peculiaridades e complexidades, pois isso é a África.


Se pararmos um instante, mesmo nessa grande capital que não dorme, para ouvirmos um pouco sobre suas trajetórias que tiveram até chegar a este destino, mais especificamente na Rua 24 de Maio, bairro da República, com certeza saíremos convictos de que este grande continente, tão explorado e pouco valorizado pelo “primeiro” mundo, tem muito a nos ensinar. E faz isso por meio destes nomes, destas vidas, que agora dividem a terra “onde canta o sabiá” conosco.



EPÍLOGO – BOSQUE

Ryszard Kapuściński chegou ao continente africano em 1957. Correspondente especial vindo da fria e cinzenta Londres, Kapuścińsk conheceu o calor das terras africanas, tomada pelo intenso poder do sol aproximadamente 24 horas por dia, durante os anos em que trabalhou escrevendo relatos sobre as mudanças políticas e sociais que tomaram vários países da região na época.


Quando estava em Acra, capital de Gana, o jornalista notou algo curioso a respeito do tempo. Sim, o tempo. Disse Kapuściński: “os habitantes da África têm uma noção totalmente diferente do tempo. Para eles, o tempo é algo mais solto, aberto, elástico, subjetivo. É o homem que influencia a formação do tempo, seu desenrolar e seu ritmo”.


Curiosamente, esta passagem veio à mente enquanto conversávamos com um jovem angolano, recém chegado ao Brasil. Kennedy Bunga, seminarista de 23 anos, “é um filho da cidade”, como ele mesmo se define, mas tem lidado com uma nova noção sobre o tempo, aqui na capital de São Paulo. Literalmente.


Faz dez meses que Kennedy convive com a correria permanente da “metrópole que não dorme”. Nascido na capital de Angola, Luanda, Kennedy - o tímido seminarista do Seminário José Manuel da Conceição (JMC), o mais antigo do Brasil - deixou sua grande família - pai, mãe, e quatorze irmãos mais novos - para seguir o propósito de se tornar pastor da Igreja Presbiteriana. “Tudo começou em 2013, alguns irmãos seminaristas do JMC foram para o meu país dar formação (teológica) na minha igreja, lembro que um deles, Jonatas Reis, escreveu o nome de Deus em hebraico na lousa e eu fiquei super maravilhado”. Kennedy ainda não sabia, mas esse sentimento iria mudar sua vida por completo.


Aproveitando a ida dos seminaristas, ele participou do curso para jovens na África e assim o interesse pelo estudo das línguas e da teologia foi só aumentando. Em 2014, dois seminaristas voltaram para a Angola, a Eliane e o Jair. “Não sei o que viram em mim, mas acharam que eu tinha jeito. Os seminaristas então falaram com meus pais sobre a possibilidade de vir ao Brasil para estudar teologia e, felizmente, eles deixaram”. Por mais que Kennedy quisesse muito seguir seu sonho, havia o impasse da dificuldade financeira.


Mesmo com empecilhos, Kennedy foi atrás do que queria. Após quatro anos e várias economias, veio para São Paulo estudar no seminário JMC com o objetivo de se tornar pastor. Kennedy diz que há várias diferenças entre os dois países. Angola possui muitas províncias, e estas, por sua vez, muitas aldeias. O país que conseguiu a independência há 40 anos ainda luta para se desenvolver. Ao seu ver, o Brasil, ou pelo menos, São Paulo, está muito mais avançado na tecnologia. “O brasileiro também é muito simples na vestimenta e na Angola é tudo mais exagerado, com mais cores, mais acessórios”


No bosque da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o angolano nos fala que sua rotina é muito puxada como a de vários paulistanos. Estuda de segunda a sábado, no período integral. Todo o seu tempo livre usa para ler e estudar mais, porque, gosta de sempre estar fazendo algo útil. “Cada minuto vale muito. No Brasil, tudo é muito corrido. Quando eu cheguei, e estava andando pela cidade, principalmente para pegar o metrô, eu via muitas pessoas. Me perguntava para onde estavam indo, porque eram muito velozes. Uma vez falei com uma amiga do porquê esse pessoal anda assim tão rápido. Ela me respondeu que a vida é muito corrida e falou que daqui um tempo eu estaria assim. Eu duvidei, mas é verdade, nunca mais andei lento aqui.”


Entre o tic- tac do relógio, Kennedy vai vivendo. Desde muito novo, soube a hora de esperar e a hora de fazer acontecer. Atualmente, corre contra o tempo para alcançar seus objetivos e ultrapassar seus obstáculos. Assim, não vê a hora de começar um novo presente, com sua noiva que o espera em Angola, e um dia, levar a mensagem do evangelho e transformar vidas em sua terra, como presenciou tempos atrás.





Esse texto foi publicado na Revista Narrativa, em 29 de setembro de 2020.

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